Sonia Fleury fala sobre políticas sociais, democracia e participação; veja entrevista

Professora Sonia Fleury (foto: ebape.fgv.br)

Em entrevista ao Democracia e Justiça, Sonia Fleury, professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da FGV, fala sobre os avanços nas políticas sociais no Brasil nos últimos 25 anos, mecanismos de participação e democracia. A pesquisadora, que participou ativamente da luta pela democratização do país, atuando em instituições como CEBES e a ABRASCO, que impulsionaram a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), esteve presente no Seminário Internacional "Democracia, Conflitos e Mudança social: maneiras de pensar o Brasil contemporâneo"", realizado no mês passado, em Belo Horizonte. Veja a entrevista na íntegra.

 

Por Maria Alice Silveira

 

Democracia e Justiça: Sônia, você tem um histórico de militância na luta por direitos sociais, principalmente na área da saúde pública. Qual balanço você faz desses últimos 25 anos no Brasil na área de políticas sociais. O que mudou?

 

Sonia Fleury: Bom, foi a partir da Constituição de 1988 que começou a se introduzir direito de cidadania a saúde. Já existia um movimento que vinha crescendo nesse sentido e, com nossa participação junto ao relator da seguridade social, nós conseguimos colocar a assistência social na Constituição de 1988.

 

A assistência social foi criada então de baixo para cima. Para compor a seguridade social você tinha somente duas comissões: a de previdência e a de saúde. Não estava pensada a assistência como um direito de cidadania. E isso foi uma grande vitória que o movimento dessa área conseguiu segurar para que não retrocedesse. Na minha opinião, essa foi a área que mais se institucionalizou. O SUS tinha um projeto próprio, o SUAS era uma cópia do SUS e, progressivamente, eles criaram uma capacidade estatal própria para fazer valer esses benefícios.

 

Assim, houve uma grande mudança que foi a incorporação desses direitos, no entanto, outras mudanças não aconteceram. Por exemplo, o fato de você ter colocado como instrumento institucional a seguridade social, no orçamento da seguridade social, deveria fazer com que existisse um planejamento e um orçamento cuja fontes deveriam ser exclusivas. Porém, nem uma coisa nem outra funcionaram. Então, se ampliou direitos, mas a área de sustentação institucional e financeira não correspondeu, e, em alguns casos, deteriorou os serviços. Foi um processo, como todos de construção da democracia, que teve idas e vindas.

 

Eu acho que hoje, por exemplo, na área de saúde, está super consolidada a noção de direito à saúde, embora haja problemas com o exercício desse direito e qualidade não está assegurada. Além disso, há uma deturpação por dentro do sistema, que foi pensado como um sistema mais público, basicamente, embora desde o início ele dependesse da contratação de serviços privados. Progressivamente, vem se criando uma associação de interesses públicos e privados, formas de gestão mais privatizadas, parcerias público-privadas que proliferaram. Os hospitais universitários hoje são empresas e isso não foi desenhado dessa forma, nem avaliado seriamente se isso é melhor.

 

DJ: Que fatores e mecanismos ajudaram nesses processos de consolidação de direitos?

 

Sonia Fleury: Além dos mecanismos de participação, como os conselhos, outros processos também foram importantes. O processo de descentralização foi muito importante e se deu de forma concomitante ao processo dos mecanismos de participação. Não se pensou um sistema participativo no nível central. Pensou-se um sistema participativo desde o nível local até o nível central. E isso gerou grandes mudanças em termos do perfil dos gestores locais, que eu abordo no meu último livro, “Democracia e Inovação na Gestão Local de Saúde” (2014).



DJ: Que mudanças foram encontradas nesse trabalho?

 

Sonia Fleury: No livro, há dados extremamente interessantes. Por exemplo, nós tínhamos como hipótese que, a medida que a democracia avançasse, nós teríamos, como expressão da democracia, um perfil diversificado dos gestores. Ou seja, em vez desses gestores serem todos homens, brancos, médicos, de 35 a 55 anos, nós teríamos um quadro de mulheres, negros e assistentes sociais como gestores de saúde. A pesquisa confirma a hipótese da diversidade e isso é muito importante, pois mostra que a democracia funcionou na participação.

 

No entanto, um dado nos chamou muita atenção: nós pensávamos que era mais fácil encontrar esse processo mais diversificado nas metrópoles. Mas a pesquisa diz ao contrário: mulheres, negros e outros profissionais estão entrando para exercer essa função de uma elite dirigente nos locais onde a competição é menor. Ou seja, onde você ganha mais, tem mais poder, mais prestígio e faz carreira política os gestores ainda são médicos, homens, brancos, exatamente como eram. E isso é um dado verdadeiramente surpreendente para a democracia! Nós pensávamos que a urbanização e a metropolização levaria a um padrão menos conservador de recrutamento do gestor, mas não é isso que ocorre.

 

A pesquisa traz também muitos outros dados interessantes mostrando o que melhorou nos últimos anos. O Conselho hoje é uma instância realmente reconhecida. Os mecanismos de formação de opinião dos próprios gestores, os CONASEMS, ganharam cada vez mais importância. Ali é que eles discutem entre pares. É estratégico se você quiser algum tipo de mudança, o Conselho é um dos grandes irradiadores de inovação.

 

Além disso, a nossa preocupação nesse trabalho não é só a inovação, mas a difusão da inovação. Neste país tão diverso, como você difunde a inovação que é um grande problema. E a gente conseguiu ver que há municípios que têm um tamanho mais favorável para incorporar inovações, a difundi-las para serem mais manejáveis e gerenciáveis. Enquanto municípios muito pequenos costumam ser pobres em recursos a ponto de não conseguirem nem incorporar as inovações, a não ser que sejam subsidiadas, em municípios muito grandes, o nosso modelo descentralização ficou no meio do caminho. Ele descentralizou para o município, mas no caso de municípios como São Paulo, tem que descentralizar dentro dele. E nosso modelo não foi pensado dessa forma.

 

Existem coisas que você vai vendo e que a própria dinâmica do processo pode colocar uma contradição e a gente tem que pensar em como resolver. Não estava pensado naquele modelo único de descentralização ou de participação. É um modelo único de Conferências e Conselhos? Será que isso serve para o Brasil inteiro? Qual a capacidade técnica, a autonomia política que tem os atores no município pequeno? Como você reforça isso?

 

São situações tão diferenciadas e, em minha opinião, eu acho que isso deve ser repensado. Adaptá-lo a contingência ligada a região e as peculiaridades. Esses mecanismos não são tecnologias isentas da política, elas são fruto de um projeto político. Então é preciso criar condições políticas para que elas funcionem.

 

Eu acho que nós estamos na hora de repensar nos limites desses mecanismos. Como fazer isso funcionar de uma forma mais efetiva? Conselhos e Conferências são inovações importantíssimas, mas precisamos repensar a eficácia da participação. Senão as pessoas desanimam, ou passam a atuar na esfera pessoal. Para ele ser tratado na esfera pública, ele precisa não só ser comunicacional. As pessoas vão lá, se enfrentam, discutem, mas se é uma política pública tem que ter uma eficácia. Política pública é para ter um resultado sobre uma realidade. Não pode se entender a participação só como um momento participacional, mas é preciso entendê-la como um momento instrumental, que é o momento que essa vontade se transforma em ação consequente e eficaz.

 

DJ: Sobre a sua apresentação no Seminário Internacional: Conflitos, Democracia e Mudança Social: maneiras de pensar o Brasil Contemporâneo, como podemos pensar o Brasil atual, fazendo a relação entre o tema do seminário: democracia, conflito e mudança social? O que podemos pensar a partir disso?

 

Sonia Fleury: Eu fiz uma proposta, um modelo analítico que utilizo, em que democracia não é entendida como um estado de coisas, nem um conjunto de procedimentos e nem um regime. Nesse modelo, eu entendo democracia como a tensão dialética entre ter relações de poder que alcançam ser institucionalizadas e materializadas e que, por serem materializadas, se colocam no direito de serem pensadas como consensuais. Essa tensão se articula com a permanente irrupção daquilo que está deserdado dessa norma e que também aparece reivindicando não ser contra a democracia, mas reivindicando a democracia. Ou seja, desejando ser colocado na condição de igual. Para isso, é necessário uma ruptura, que é o processo de subjetivação.

 

Entre subjetivação e institucionalização você pode pensar o que a gente conseguiu institucionalizar e que outras formas de manifestação de sujeitos políticos estão se construindo. Essa materialidade que se criou melhorou a democracia, criando uma esfera mais plural e inclusiva, mas que não deu conta de tudo, e que outras formas vão surgir na medida em que esses atores apareçam.

 

Nós não damos conta do problema urbano, nós não damos conta dos problemas nas periferias, nós não damos conta de várias questões fundamentais para a vida das pessoas em que essa institucionalidade é pouca. Talvez tenhamos que se pensar em coisas que venham desde o lugar onde esses sujeitos estão se construindo. Pensar a democracia só como consenso é você defender a ordem. Mas e a desordem? O que está fora dessa ordem, onde vamos colocar? Ou é coerção, ou é a possibilidade de que isso apareça questionando a possibilidade de refazer a ordem, criando novas institucionalidades e novos consensos até chegar em outras contradições. E é assim que se vai andando na democracia no sentido de “democratizar como um processo” de não só de inclusão, mas de autonomização dos sujeitos e de reconstrução da ordem com base nessa noção de igualdade e justiça.