Leonardo Avritzer fala sobre o judiciário e suas dimensões políticas
O professor da UFMG, Leonardo Avritzer, faz uma análise sobre revisão constitucional e os conflitos entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional no Brasil. O artigo foi publicado no portal Valor Econômico, na semana passada. Avritzer é também um dos organizadores do livro Dimensões Políticas da Justiça (Civilização Brasileira), que reúne artigos de pesquisadores brasileiros com uma abordagem mais ampla sobre a justiça. Leia abaixo o artigo na íntegra.
O Judiciário e suas dimensões políticas
Por Leonardo Avritzer
A revisão constitucional é um instituto político-jurídico surgido nos Estados Unidos no começo do século XIX, ainda que não previsto na Constituição daquele país. Desde 1803, os Estados Unidos operam ininterruptamente com a revisão constitucional, isto é, com a Suprema Corte sempre que provocada declarando a constitucionalidade e ou a inconstitucionalidade de leis e atos do Congresso e do Poder Executivo.
A revisão constitucional foi a forma encontrada naquele país para diferenciar legislação ordinária da legislação constitucional e a maneira de fazê-lo é atribuindo este papel revisor à Suprema Corte. É possível dizer que este sistema funciona relativamente bem e foi estendido a muitos países. Ainda assim, os principais juristas americanos apontam dois diferentes momentos na história do país. Os momentos normais nos quais as decisões da Suprema Corte são incorporadas à tradição jurídica do país sem nenhuma contestação e os momentos de crise, nos quais há um forte conflito entre o Poder Executivo e o Judiciário sobre o conteúdo da revisão constitucional.
Dois momentos são exemplares a este respeito: os conflitos entre a Suprema Corte e a Presidência durante o momento abolicionista no qual Lincoln se desentendeu profundamente com o juízes e o mesmo em relação ao "New Deal" onde Roosevelt cogitou até mesmo em mudar a composição da Corte. Ou seja, até onde vai o poder de uma Corte constitucional em questões nas quais a população se manifesta é uma questão em aberto até mesmo nos Estados Unidos.
O Brasil tem, no que diz respeito à divisão de Poderes, um Supremo Tribunal Federal com maiores prerrogativas do que o americano. Em primeiro lugar, a revisão constitucional está institucionalizada pelos artigos 102 e 103 da Constituição. Neste sentido ela é uma prerrogativa do STF. Em segundo lugar, o Supremo acumula mais duas funções na tradição brasileira, a de Corte revisora e a de foro especial. São estes três papéis conjuntos que têm fortalecido o Supremo em relação aos outros Poderes, em especial o Congresso Nacional.
Ainda assim, é importante perceber que o Supremo tem dois limites intrínsecos nas suas funções: tem de respeitar a tramitação do processo legislativo, uma vez que o controle de constitucionalidade é sobre projetos de lei votados e concluídos, e possui o limite de ter de respeitar o Congresso naquilo que os artigos 49, 50 e 51 da Constituição denominaram de atribuições exclusivas. Ou seja, a revisão constitucional ocorre em um regime de poder dividido e não em um sistema de supremacia do poder judicial. É a partir destes pressupostos que podemos analisar os conflitos recentes entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional.
Nos últimos anos, um conjunto de decisões do STF interferiram diretamente em decisões do Congresso Nacional. Vale a pena citar as mais importantes: a derrubada da cláusula de barreira, a determinação de seguir a fidelidade partidária e mais recentemente duas suspensões importantes de votações do Congresso Nacional, a dos royalties e agora da lei sobre o tempo de televisão nas eleições de 2014.
Todas estas decisões acabaram por estabelecer um clima de animosidade entre o STF e o Congresso Nacional e vale a pena analisá-las sob o prisma da judicialização da política e da divisão de Poderes na democracia.
Sob o prisma da judicialização, é importante perceber que todos os casos acima mencionados tratavam de matérias que dificilmente teriam relação com direitos ou princípios constitucionais importantes. É verdade que em alguns casos, o STF invocou o direito das minorias, como foi o caso da cláusula de barreira, mas tal argumento não pode ser levado muito a sério quando pensamos que países como a Alemanha, Suécia ou Espanha possuem cláusula de barreira e são democracias consolidadas.
Quando pensamos o princípio da divisão de Poderes e seu equilíbrio é possível também perceber o quanto as decisões do STF são problemáticas. Em geral quando o STF faz uso das suas prerrogativas de revisão constitucional, o correto é fazê-lo da forma como dispõem os artigos 102 e 103 da Constituição, isto é, depois que as leis em questão foram aprovadas e promulgadas. Mais uma vez, se pensamos casos importantes nos Estados Unidos como o debate sobre financiamento eleitoral e sobre seguro de saúde obrigatório, este foi o procedimento seguido pela Suprema Corte.
O que percebemos nas atitudes recentes do STF com a suspensão de duas votações bastante importantes do Congresso Nacional é uma tentativa indevida de extensão dos instrumentos de Corte revisora para o campo da Corte constitucional. Ou seja, não faz parte das atribuições do STF interromper votações por via de liminares.
Podemos afirmar que há uma tentativa do STF de expandir o seu poder de revisão constitucional em relação ao Congresso Nacional e que tal tentativa não é boa para a democracia no Brasil porque rompe com o princípio da divisão dos Poderes. Este progressivo deslocamento do papel do STF acende uma luz amarela na institucionalidade política brasileira, como se lê no "Dimensões Políticas da Justiça" (Civilização Brasileira), destinado a jogar luzes sobre as razões por que o sistema de justiça está tão politizado.
Os ministros do Supremo deveriam ouvir o sábio conselho do mestre do federalismo James Madison: para ele, a divisão entre os Poderes só é estável quando implica na mínima interferência possível de um Poder sobre as prerrogativas dos outros Poderes.
Leonardo Avritzer é professor associado do Departamento de Ciência Política da UFMG, presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e colunista convidado do "Valor".
E-mail:
Fonte: Valor Econômico
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