Plebiscito e reforma política

Para Leonardo Avritzer, três reformas são fundamentais para mudar o sistema político brasileiro: o financiamento público de campanha, a lista fechada e a cláusula de barreira

 

 

As manifestações públicas que têm ocorrido no país nas últimas três semanas renovaram completamente a pauta política da democracia brasileira. Amarrada por uma aliança com o PMDB, que facilita a governabilidade ao custo da perda crescente da legitimidade, o governo Dilma reagiu as manifestações com a proposta de um plebiscito sobre a reforma política. Vale a pena pensar aqui o que um plebiscito significa e o que ele pode aportar para a reforma política.

 

Algumas colocações que circularam na internet tentaram caracterizar a proposta do plebiscito como uma disputa entre democracia representativa e democracia participativa. O argumento, que lembra bastante algumas velhas discussões dos anos 70, colocadas ou por C.B. Macpherson ou por Carol Patenam é que haveriam duas formas de democracia e uma suposta disputa entre elas. Nada mais equivocado a luz dos debates recentes da teoria democrática. Não há duas formas de democracia, mas apenas uma e a questão da participação se coloca na sua articulação com a representação. Este é o modelo hegemônico de democracia hoje e é no seu interior que a questão do plebiscito se coloca. O artigo primeiro da nossa Constituição expressa muito bem esta visão.

 

Vale a pena lembrar que o plebiscito é uma criação da democracia representativa mais bem consolidada no mundo, a Norte-americana, e que as propostas de plebiscito, referendum e recall, todas surgiram na Costa Oeste dos Estados Unidos nos primeiros anos do século XX com um propósito muito claro. Botar um certo fim a apropriação privada do sistema político pelos donos das ferrovias, os todos poderosos daquele momento que compravam o sistema político. Como a representação não conseguia fazê-lo, o recall e plebiscito passaram a ser a maneira de conter a privatização do sistema político (sobre isso ver o artigo excelente de Persily, Nathaniel A. (1997) The Peculiar Geography of Direct Democracy: Why the Initiative, Referendum and Recall Developed in the American West). Acho que existe alguma semelhança entre o que ocorreu na Costa Oeste dos EUA e o que ocorre no Brasil. O sistema político brasileiro está fortemente privatizado e isto precisa ser regulado.

 

A questão principal da participação e da representação é que elas servem para coisas diferentes. No caso brasileiro, acho que podemos ter certeza que o sistema representativo cumpre um papel importante na nossa democracia, mas ele não consegue se reformar e não consegue se legitimar frente aos outros poderes. Ou seja, cada vez mais, vemos ou o Supremo ou o Executivo, e em geral os dois, assumindo novas prerrogativas. Portanto, a reforma do sistema político mesmo que ela venha de fora tenderá a melhorar a legitimidade do Congresso se ela for exitosa. O plebiscito terá a vantagem de decidir pela arquitetura do sistema político de uma forma muito ampla e, a partir daí, permitir uma discussão normativa mais aprofundada pelo Congresso Nacional sobre o formato final das leis.

 

Me parece que três reformas são fundamentais e podem mudar o sistema político brasileiro: o financiamento público de campanha, a lista fechada e a cláusula de barreira. Todas as três estão na origem da crise política que vivemos hoje. Somente o financiamento público pode melhorar a composição do Congresso Nacional e re-colocar atores políticos de base no Congresso. Cada vez mais vemos só políticos profissionais no pior sentido no Congresso, isso é, aqueles que se beneficiam de emendas de bancadas ou fortes financiamento de lobbies. Diria algo parecido em relação a lista fechada. Cada vez mais vemos, em todos os partidos, pessoas desconhecidas e bem financiadas se elegendo e líderes de causas importantes ficando de fora do Congresso. Mais uma vez, o problema do dinheiro na política tem prevalecido com as consequências conhecidas. Por fim, sei que dificilmente a cláusula de barreira voltará a ser decidida, mas chamo atenção que uma das coisas que compromete o sistema político brasileiro é o alto custo (político e financeiro das alianças) que todo presidente, desde FHC, tem que costurar para governar. A cláusula de barreira mesmo que de 1% já melhoraria muito esta situação. Portanto, acho que temos bons e fortes motivos para supor que o plebiscito pode contribuir significativamente para mudanças no sistema político que o ponham em uma maior sintonia com as aspirações da população brasileira, tão bem vocalizadas nestas últimas semanas.

 

Por Leonardo Avritzer