Peter Wagner, da Universidade de Barcelona, fala sobre democracia, modernidades e conflitos nas sociedades contemporâneas

O professor da Universidade de Barcelona, Peter Wagner, esteve no mês passado no Brasil e conversou com o Democracia e Justiça. Na conversa, Wagner, que é coordenador do grupo de Trajetórias da Modernidade (TRAMOD), falou a respeito de sua pesquisa sobre sociedades modernas, em especial Brasil e África do Sul. Segundo o professor, a modernidade não é algo que se originou na Europa, mas é “fruto de transformações globais históricas que criam formatos diferentes nas quais surgem diversas interpretações da modernidade”. Para Wagner, democracia é um componente chave da modernidade.

 

Por Leonardo Barros e Maria Alice Silveira

 

Democracia e Justiça: Professor, a sua pesquisa atual é um estudo comparativo entre o Brasil e a África do Sul. O senhor poderia nos falar um pouco sobre esse trabalho?

 

Peter Wagner: O trabalho que eu estou desenvolvendo atualmente - e que está inserido no contexto do Seminário Internacional (realizado no mês passado) que participei - é um projeto de pesquisa chamado Trajetórias da Modernidade. É uma análise comparativa de sociedades e de regiões do mundo à luz das suas interpretações da modernidade. É uma comparação entre sociedades contemporâneas no passado recente, mas com uma perspectiva histórica. Por isso, chamamos de Trajetórias da Modernidade o desenvolvimento histórico dessas sociedades.

 

A especificidade deste projeto é que nós temos a maior parte do nosso pessoal estudando a África do Sul ou o Brasil. Há também outras sociedades latino-americanas, como o Chile. E há também o estudo dessas sociedades em perspectiva comparada. No entanto, o nosso o escopo é mais amplo. Isso porque nós tentamos fazer uma comparação triangular entre essas sociedades ou regiões e a Europa. Estamos utilizando pesquisas passadas sobre a Europa, utilizando a minha pesquisa e também de outros pesquisadores.

 

A questão principal aqui é a comparação entre as formas de modernidade, discordando da ideia de que a modernidade é algo que se originou na Europa e se difundiu pelo mundo. Nós preferimos pensar em termos de transformações globais históricas que criam formatos diferentes nas quais surgem diversas interpretações da modernidade. Nesse sentido, existem modernidades brasileiras ou latino-americanas há muito tempo, bem como uma modernidade sul-africana. Nós olhamos para estas diferentes interpretações sob a luz das experiências com a organização social e política.

 

A ideia subjacente, em contraste com o que muitas pessoas no debate público e científico pensam, é de que não há uma linha única de desenvolvimento das sociedades, que leva à sociedade moderna sem alternativas, onde todas as sociedades se tornarão capitalistas e liberal-democráticas. O pressuposto básico para nós é de que há sempre possibilidades de diferentes formas de desenvolvimento social e político, que são unidas por uma concepção mais ampla de modernidade e que pode ser interpretada de diversas formas e à luz das experiências que uma sociedade teve.

 

A modernidade, então, seria algo entendido não em termos de instituições sociais, mas antes de autoconhecimento. Esse autoconhecimento leva de alguma forma à autonomia e à liberdade, à autodeterminação individual e coletiva, à liberdade e à democracia e, por outro lado, ao controle sobre a própria vida, sobre a existência comum e sobre a natureza. São ideias familiares do iluminismo e de suas interpretações recentes, mas o que foi concebido erroneamente é que essas ideias emergiram em algum ponto da história na Europa.

 

O nosso argumento é que essas ideias estão de fato lá, mas suas origens podem ser retraçadas a vários pontos na história mundial e estão sempre em tensão, podendo ser interpretadas de maneiras diferentes.

 

DJ: Porque a escolha do Brasil e África do Sul para a comparação?

 

PW: O ponto de partida é que a comparação deveria ser entre sociedades europeias e não-europeias, ou entre sociedades do norte e do sul do planeta para ter abertura a uma comparação mais ampla. Então, meu interesse pessoal era ampliar meu próprio conhecimento das sociedades. Agora, a escolha dessas duas sociedades (Brasil e África do Sul) foi, em primeiro lugar, porque ambas são sociedades atlânticas. E a razão para isso é que essa ideia de formas plurais de modernidade emerge na academia, em grande parte, por meio da ideia de Shmuel Eisenstadt de modernidades múltiplas, o que foi uma grande contribuição para a ampliação do debate.

 

No entanto, Eisenstadt e seus seguidores sempre trabalharam com sociedades da Eurásia, do velho-mundo, China, Japão e em comparações com a Europa. A ideia era de que havia uma multiplicação de modernidades quando civilizações cristalizadas, como a chinesa ou a japonesa, se encontravam com a modernidade europeia ou ocidental. Isso é muito interessante, mas não pode ser a história completa. Há alguns problemas conceituais ao olharmos para sociedades que emergiram de um processo de colonização. É uma abordagem completamente diferente, não se pode presumir que haja civilizações cristalizadas, e não há um “encontro” com a modernidade que explique transformações subsequentes. Isso nos possibilita uma abordagem muito mais dinâmica da modernidade, esta é a segunda razão para a escolha desses países.

 

A terceira razão é que há muitas sociedades ainda onde podemos elaborar esta ideia de autoconhecimento. Ao olharmos para as interpretações de modernidade nós sentimos que é mais fácil, por assim dizer, se olharmos para sociedades onde há algum debate acerca de questões como “quem nós somos?”, “o que queremos?” ou “como nós nos organizamos?” e esse é o caso de Brasil e África do Sul. Em ambos os casos o debate é muito evidente, na África do Sul o debate é frequentemente muito crítico com um tom de “podemos sustentar o que somos?” ou “como podemos continuar?” e no Brasil tem um tom mais otimista e de continuísmo. A história sul-africana possui rupturas mais profundas do que brasileira. Em ambos os casos há este debate intenso, mas este não é o caso de outras sociedades. Se nós tivéssemos olhado para outras sociedades teria sido mais difícil encontrar estes autoconhecimentos e analisá-los. Então, é por isso que escolhemos especificamente o Brasil e a África do Sul.

 

DJ: E como o senhor analisa o papel que o Brasil tem exercido no cenário geopolítico? A pesquisa está focando em dois dos países do BRICS e é muito interessante este processo constante de autorreflexão acerca de “quem somos nós?”.

 

PW: Certamente o BRICS faz também parte do contexto, mas eu tenho que destacar que as questões geopolíticas não são centrais para o projeto. Eu provavelmente vou me envolver com algumas iniciativas do BRICS, mas não estou totalmente convencido de que o BRICS seja uma fórmula que funcione. Creio que as sociedades que o formam são muito diferentes entre si e que a questão acerca da sua capacidade de se manterem juntos ainda é uma incógnita. Mas o que podemos ver é que a própria constituição do BRICS é parte de uma mudança na constelação global, algo que chamamos de mundo multipolar e isso é algo muito interessante.

 

Acho que todas as sociedades, ou as elites das sociedades que criaram o BRICS têm interesse em criar este mundo multipolar, mas têm visões muito diferentes do que isto pode ou deveria ser. Rússia e China têm interpretações distintas do mundo e há um tom normativo subjacente ao projeto. Nós também estamos interessados em identificar alternativas que sejam normativamente mais sustentáveis e interessantes. Então, acho que podemos apontar o Brasil e, em alguma medida, a África do Sul como países que estão nos debates globais frequentemente.

 

Por exemplo, em Nova Iorque, as posições brasileiras, que de alguma forma remetem a autoconhecimento do país, abrem horizontes normativos que são mais ocultos ou não são promovidos em outros contextos. Democracia participativa é um deles, mas também as recentes intervenções relacionadas ao escândalo da espionagem americana ou os posicionamentos ambientais. Todos esses elementos mantém meu interesse pelo Brasil, não por ser diferente do Ocidente ou da Alemanha, mas também por ser mais do que somente política internacional realista como no caso de Rússia ou China. Há mais conotações normativas interessantes no posicionamento brasileiro e, até certo ponto, no sul-americano. A definição dos interesses da África do Sul na região da África subsaariana é mais ambivalente do que os interesses do Brasil.

 

DJ: Sobre Seminário Internacional que você participou em setembro, em Belo Horizonte (Seminário Internacional “Democracia, conflitos e mudança social: Maneiras de pensar o Brasil Contemporâneo”). Como podemos ente tentando entender essa relação entre democracia, mudança social e conflitos no âmbito de uma interpretação sobre o processo de modernização brasileiro?

 

PW: Bom, minha própria ênfase no assunto provavelmente não é compartilhada por todos os participantes. Começando pelo termo democracia. Trata-se de um termo central na minha própria definição de modernidade, junto com autonomia e a liberdade. Democracia é um componente chave da modernidade. Uma das tensões que estava indicando, que abre espaço para diferentes interpretações, diz respeito à relação entre liberdade individual de um lado, e autonomia coletiva e democracia, de outro. A teoria política nos dois últimos séculos sempre tentou definir a exata e direta relação entre liberdade individual e democracia. Do meu ponto de vista, essa é uma busca fútil porque há uma grande variedade de possibilidades dentro das quais cada sociedade irá adotar um certo tipo de relação entre ambas, à luz de sua experiência passada. Por exemplo, o pensamento político sempre enfatizou a (importância da) liberdade individual após experiências totalitárias, devido à necessidade de equilíbrio naquele momento. Mas essa visão liberal também não é a correta, porque subestima a necessidade de deliberação e participação coletivas. Então, o termo democracia continua aberto a diferentes formas de interpretação.

 

O conflito emerge imediatamente, então, porque sempre há disputas em torno de interpretações em todas as sociedades. Às vezes nosso trabalho é mal entendido, particularmente o termo autoconhecimento, no sentido de que há um consenso nas sociedades sobre “quem nós somos” e “o que queremos”, mas o termo auto entendimento denota, na verdade, um campo conflitivo de interpretação no qual há posições diferentes em conflito.

 

Portanto, a abertura à interpretação da modernidade e da democracia leva à questão do conflito possível sobre qual é a interpretação correta. Esse foi o pano de fundo para os termos chave do nosso trabalho no Seminário, que se unem nos termos sociedade moderna e mudança social como resultado do conflito acerca da interpretação da modernidade.