Manifestações: o que o Judiciário tem com isso?

Foto: José Cruz/ Agência Brasil

Essa é uma luta que passa pela reformulação do modelo estrutural do Judiciário, altamente rígido e hierárquico

 

Por Marjorie Marona

 

Os protestos que vêm eclodindo em todo o Brasil nas últimas semanas têm o mérito (com um empurrãozinho da grande mídia, ávida por pautá-los) de trazer inúmeros temas para a esfera pública. A grande mídia insiste em centrar imagens e falas em torno de pautas genéricas e rótulos vazios – “sem partidos”, “não à corrupção”, “fora Copa”, dentre outros. No entanto, quem esteve em pelo menos uma dessa manifestações pode testemunhar uma espécie de “feira de propostas”, muito mais amplas e difusas.

 

Com seus vários cartazes, individualmente ou em pequenos grupos, manifestantes pediam, sim, mais investimento em educação e saúde; bradavam, sim, por reforma política e um controle mais rigoroso da corrupção. Mas não só. Diversos movimentos sociais - que desde os primeiros protestos marcaram presença, organizados sob faixas e bandeiras - apresentaram suas propostas: liberdade sexual, direito ao próprio corpo, ações afirmativas, demarcação de terras indígenas e quilombolas, além, é claro, da mobilidade urbana (onde tudo começou).

 

Entretanto, nem todos os temas chegaram a conformar a agenda política que resultou dessa onda de manifestações. A presidenta Dilma Rousseff, em dois pronunciamentos, reafirmou a agenda distributiva do Partido dos Trabalhadores (PT). Em um primeiro momento, recolocou propostas que o governo tem tido dificuldades de aprovar no âmbito do Congresso Nacional, invertendo estrategicamente os custos políticos das manifestações nas ruas. Reafirmou a importância do projeto de lei que previa a destinação de 100% dos recursos do petróleo para a educação e a importância de contar com médicos vindos do exterior para ampliar o atendimento do Sistema Único de Saúde. Inovou ao propor um Plano Nacional de Mobilidade Urbana, articulando os governos federal, dos estados e prefeituras.

 

Em um segundo momento, reafirmou a disposição que o então presidente Luiz Inácio Lula da Siva havia demonstrado em 2009 ao encaminhar ao Congresso Nacional um projeto de lei que tornava a corrupção dolosa crime hediondo e, talvez no ápice da ousadia, propôs um plebiscito para convocação de uma assembleia constituinte exclusiva pela reforma política.

 

A tradição democrática do Partido dos Trabalhadores se reafirmava, então, pela retomada de uma proposta que José Genoino havia apresentado ainda em 2008 na Câmara dos Deputados.

 

Os dois pronunciamentos fizeram muito bem aos ouvidos de esquerda. Não só porque há muito tempo não se via o PT falar como PT, mas também porque a presidenta foi capaz de conter (pelo menos por enquanto) os avanços conservadores da oposição que, articulada pela grande mídia, visava à desestabilização do governo pela reinterpretação das manifestações nas ruas.

 

Mas é preciso ter clareza também acerca do que não avançamos. E não avançamos uma linha no campo das demandas por reconhecimento. Não por acaso, a presidenta não dirigiu uma palavra acerca de diversas demandas que, na carona dos reclames por mobilidade, exigiam um posicionamento do governo acerca de projetos de lei que enfrentam de modo conservador às lutas por reconhecimento, seja no campo da liberdade/diversidade sexual ou no que toca ao direito ao próprio corpo, afirmado pelo movimento feminista.

 

Não por acaso, a presidenta não dirigiu uma palavra acerca das ações afirmativas de enfrentamento das desigualdades raciais, tais como o projeto de lei que prevê cotas para negros/as em concursos públicos.

 

Não por acaso, a presidenta não dirigiu uma palavra acerca da demarcação das terras indígenas e demais direitos sonegados às comunidades quilombolas e outras comunidades tradicionais.

 

Se a presidenta politizou o debate do campo das políticas distributivas, tomou o rumo contrário no que toca às políticas pautadas em uma agenda de reconhecimento. Mas por quê? Seria, nesse tocante, a esquerda tão conservadora quanto a direita? Não parece essa uma hipótese acertada se considerarmos a ampliação das estruturas e dos espaços institucionais destinados à conformação desse tipo de política. Basta que se observe que a Presidência da República é constituída, desde 2003, dentre outras, por uma Secretaria-Geral que tem como principal atribuição intermediar as relações do governo federal com as entidades da sociedade civil, por uma Secretaria de Políticas para as Mulheres, por uma Secretaria de Direitos Humanos e por uma Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Isso sem mencionar as conferências nacionais - talvez a mais abrangente política participativa no Brasil, atualmente - que contam com mais de vinte espaços referenciados a direitos de minorias.

 

Mas então por quê?

 

Arriscaria a hipótese de que os custos políticos (eleitorais) ligados à defesa de demandas dessa natureza seguem altos, mesmo para um governo que nos últimos dias sinalizou uma inflexão (maior) à esquerda. Nesse contexto, o sistema de justiça de um modo geral, o Judiciário especialmente, e, mais pontualmente, o Supremo Tribunal Federal - pelo exercício quase exclusivo do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos – reafirma o seu protagonismo no processo de ampliação do acesso à justiça pela via dos direitos.

 

Na verdade, boa parte daquelas questões, de algum modo, já passou pelo crivo dos ministros da mais alta corte do país – demarcação de terras indígenas, células-tronco embrionárias, aborto em caso anencefalia, cotas raciais nas universidades – e outras tantas pelo juízo de outros magistrados, especialmente às questões referentes ao casamento homoafetivo e as lutas quilombolas pela terra/território. Mas aí a luta não é menos árdua. Houve avanços em alguns pontos; entretanto, na maioria dos casos, o Judiciário simplesmente mostrou-se despreparado para processar essas demandas, que afrontam a lógica liberal em que assenta o judiciário em particular, e o sistema formal de justiça em geral.

 

O fato é que, se é pra lá que os movimentos sociais devem continuar dirigindo suas demandas, é bom que incluam na sua pauta uma demanda em particular, que lhes deve ser transversal: a da ampliação e democratização do acesso ao sistema formal de justiça.

 

Essa é uma luta que passa pela reformulação do modelo estrutural do Judiciário em particular, altamente rígido e hierárquico, mas também das Defensorias e do Ministério Público; pela reformulação do processo de capacitação de seus membros (juízes, defensores e promotores) para realidades plurais, diversas e multiculturais; e pela reformulação do atual processo seletivo que, fundado em uma lógica meritocrática e altamente dogmatizado, induz um perfil de operadores que não espelha a diversidade de conhecimentos e experiências da sociedade brasileira. E esse é só um começo de conversa. 

 

Fonte: Carta Capital