Crise de ideologia

Artigo do professor e pesquisador Leonardo Avritzer, publicado na Revista Cult do último mês,  analisa a possível crise que os partidos ditos de esquerda enfrentam na atual conjuntura. Para o autor, esquerda vive hoje a mesma questão do mundo pós-guerra: a relação entre intervenção estatal e valores igualitários.

 

Por Leonardo Avritzer

 

Crise de Ideologia

 

A crise de 2008 pareceu ser, a princípio, um excelente momento para a reconstrução de uma prática e de um pensamento de esquerda no mundo. Afinal, poucas crises na história do capitalismo foram desencadeadas por elementos tão ideológicos do debate entre a direita e a esquerda.

 

A crise de 2008 foi desencadeada por dois elementos, ambos obrigatórios na cartilha do assim chamado “neoliberalismo”: a desregulamentação dos mercados financeiros e a ideia de que o mercado pode se constituir na entidade reguladora do seu próprio risco.

 

O mercado financeiro norte-americano foi fortemente regulado entre 1933 e o começo dos anos 90 por um ato do presidente Roosevelt poucas semanas depois de chegar ao poder, o chamado “Glass–Steagall Act”, que separou bancos de investimentos de bancos comerciais, limitou a alavancagem nos mercados financeiros e, principalmente, limitou o tamanho dos bancos, tornando-os regionais.

 

Com isso, estabeleceu-se uma relação entre mercado financeiro e Estado nos Estados Unidos, de acordo com a qual o mercado financeiro podia gerar lucros, mas não era capaz de desestabilizar o Estado ou a economia do país. Este equilíbrio prevaleceu até os anos 90.

 

A doutrina político-econômica que hoje denominamos neoliberalismo combateu fortemente desde a metade dos anos 90 a regulação dos mercados financeiros e defendeu a ideia que os mercados são capazes de regular o seu próprio risco.

 

Aí está a origem da crise de 2008, que, neste sentido, foi eminentemente política. Não só a desregulamentação permitiu que bancos americanos e europeus assumissem enormes posições especulativas que colocaram em risco toda a economia mundial, como os instrumentos elaborados para a avaliação do risco se mostraram completamente inócuos.

 

Como afirmou o financista George Soros, a avaliação de risco parece ser um instrumento muito interessante. O problema é que ninguém sabe como fazê-la. Ou seja, todos aqueles que tentaram ancorar o seu risco em instrumentos produzidos por Wall Street e o mercado financeiro terminaram por ter fortes prejuízos, e a principal empresa de seguros dos Estados Unidos quebrou e teve que ser salva pelo governo americano.

 

Este constitui o pano de fundo do colapso financeiro de 2008, que abriu um conjunto de oportunidades para a esquerda, entre as quais, evidentemente, a de colocar uma nova ênfase na regulação econômica dos mercados financeiros pelo estado.

 

Hoje, quase cinco anos depois dos primeiros indícios da crise, é possível dividir a reação da esquerda à crise em dois momentos: um primeiro claramente negativo e um segundo mais positivo, ainda em construção, no qual o movimentos dos “Indignados”, na Espanha, e o Occupy Wall Street assumiram um certo protagonismo.

 

Ainda que seja muito difícil definir o que é a esquerda, eu sustentaria que o pensamento e a prática de esquerda tem dois grandes polos estruturadores: o primeiro é uma ideia de justiça, seja ela social ou distributiva; o segundo é uma crítica ao mercado que aponta para a necessidade de intervenções do Estado com o objetivo de regular ou coibir excessos gerados pela própria operacionalidade do mercado.

 

Concebida desta forma, não é difícil perceber que a suposta reconstrução de uma prática de esquerda na primeira fase da crise de 2008 acabou se pautando exclusivamente pelo segundo elemento.

 

Nas principais economias desenvolvidas, o Estado resgatou os seus mercados financeiros intervindo maciçamente neles. Foi o caso dos diferentes pacotes elaborados nos EUA – um primeiro pelo governo George W. Bush e um segundo pelo governo Obama.

 

Os dois pacotes que estão na raiz dos discursos tanto do Tea Party quanto do Occupy Wall Street foram pensados exclusivamente como resgate pontual do mercado financeiro.

 

O pacote do governo Bush chegou a ser uma distribuição de cheques de US$ 25 bilhões para os maiores bancos, e o pacote do governo Obama não foi muito diferente, já que nomeou o principal representante de Wall Street como seu Secretário do Tesouro.

 

O que ocorreu como resultado de uma política de resgate do mercado financeiro sem uma proposta de justiça foi o desastre que conhecemos: os bancos americanos se recuperaram e, ao mesmo tempo, quase 2 milhões de pessoas perderam ou estão a ponto de perder as suas casas para os bancos, o desemprego nos EUA ficou acima de 8% por quase dois anos e os dados sobre pobreza no país mais rico do mundo são chocantes.

 

Ou seja, as políticas do governo Obama levaram a uma recuperação do sistema financeiro sem levar a uma recuperação da situação econômica da população. Este é o pano de fundo do Occupy, é o início da segunda fase da reação da esquerda à crise.

 

O Occupy colocou na agenda política norte-americana as duas questões que são fundamentais para uma abordagem de esquerda no país. A primeira é a falta de legitimidade de Wall Street.

 

O movimento que ocupou um parque (não por acaso um parque privado) colocou em pauta o papel destrutivo jogado por Wall Street em relação às empresas industriais (uma questão que voltou à tona nas primárias republicanas deste ano). Também pôs em questão a falta de representatividade das ações do sistema financeiro em relação à maioria da população.

 

Enquanto uma parte da população americana se vê sem condições de ter uma aposentadoria digna ou está correndo o risco de perder a sua casa, as empresas de Wall Street operam com outra lógica: têm lucros estratosféricos, parte dos quais são revertidos aos funcionários, e prejuízos igualmente estratosféricos que são cobertos pelo governo federal ou pelo Banco Central. Daí o sentido do slogan do Occupy: nós somos os 99% que mostram a dicotomia entre os beneficiários do sistema financeiro e a população americana como um todo.

 

Em segundo lugar, o Occupy ressaltou a falta de representatividade do seu sistema político e das maneiras como o poder econômico e o poder político se associam em Washington.

 

O Goldman Sachs, principal banco de investimentos em operação nos EUA, praticamente dominou os últimos governos americanos, se pensarmos que Robert Rubin (Secretário do Tesouro de Bill Clinton), Henry Paulson (Secretário do Tesouro de George W. Bush) e Timothy Geithner (Secretário do Tesouro de Barack Obama) saíram dos seus quadros.

 

As políticas feitas por esses governos terminaram por convergir contra os interesses da maior parte da população americana. É quase impossível contrariar interesses do Goldman Sachs no interior do governo e/ou do Congresso. O Occupy pôs em evidência a falta de representatividade dos políticos ao levantar a bandeira da “democracia real agora”, um dos seus principais slogans.

 

Ao levantar o slogan da inclusão econômica e da democracia real, o movimento pôs em questão os dois principais elementos da relação entre sistema econômico e sistema político tal como praticados nos Estados Unidos e com os quais o próprio Obama não foi capaz de romper.

 

Ao mesmo tempo, politizou a disputa entre direita e esquerda e mostrou as vulnerabilidades do tipo de liberalismo praticado nos EUA. A desocupação do Zuccotti Park talvez tenha sido a melhor expressão da privatização do público no país. O movimento ocupou um parque privado que tinha entre as suas regras a do funcionamento por 24 horas (todos os parques públicos nos Estados Unidos fecham durante a noite).

 

No entanto, à medida que o movimento se fortaleceu, começaram as pressões pela desocupação do parque. A empresa proprietária mudou o estatuto, proibindo acampamentos no seu interior. Em seguida, a polícia desocupou o parque na madrugada do dia 14 de novembro de 2011. Assim, o próprio ato de desocupação mostra a natureza não-pública do modo como a política vem operando nos Estados Unidos.

 

O movimento, que se estendeu pelos EUA atingindo principalmente a Califórnia, acabou se associando neste ano às primeiras vitórias da esquerda em eleições na Europa desde o início da crise.

 

A crise europeia é uma continuação piorada das mudanças implementadas pelo neoliberalismo nos EUA, com um adendo: a situação do euro. Se o pressuposto do neoliberalismo é a despolitização da regulação e do controle do risco na economia, o euro foi um passo à frente em relação a essa concepção. Ele representa a tentativa de dissociar moeda e soberania política.

 

O euro foi criado a partir da ficção de que a estabilidade da moeda pode se desvincular da soberania do Estado ou dos Estados nacionais que a sustentam. Países com economias fragilíssimas, como a Grécia, até 2009 foram considerados livres de qualquer risco para os mercados financeiros, o que os tornou capazes de emitir enormes dívidas.

 

No momento em que os bancos e os mercados se deram conta dos riscos, eles mesmos continuaram com a tarefa de inviabilizar economias como a grega, a portuguesa e a espanhola. O PIB da Grécia cai sem parar desde 2008 e o desemprego atinge um quarto da população.

 

Mas, o que é pior, o país perdeu completamente sua soberania no processo de estabilização coordenado pela União Europeia (leia-se Alemanha) e FMI. Os recursos da EU disponibilizados para a Grécia são depositados em uma conta-corrente controlada em parte pelas duas instituições. O governo grego não tem acesso a ela.

 

Todos esses fatos levaram à vitória da esquerda na Grécia e na França. A receita “Merkoziy”, que é austeridade nas contas públicas pela via do corte de gastos públicos, parece finalmente estar em crise. François Hollande tem hoje a possibilidade de coordenar uma resposta diferente para crise econômica que se abate sobre o continente.

 

Essa resposta tem que ser ao mesmo tempo econômica e política. Econômica, porque é preciso pensar em uma regulação que não permita aos bancos incorrerem nos prejuízos que geraram e depois apresentarem as contas aos seus respectivos Estados nacionais – tal como fizeram o BNP, o Daxia e agora o Bankia. E política, porque, evidentemente, a população europeia, assim como a norte-americana, não está mais disposta a tolerar as desigualdades geradas pelos processos de resgate que não se pautaram por nenhum critério de justiça.

 

Ou seja, hoje, com as eleições na Grécia e na França, com um possível colapso do governo de direita na Espanha e com o fortalecimento de movimentos como os “Indignados” e o Occupy, voltamos à questão clássica que levou a esquerda europeia ao poder no pós-guerra: como estabelecer uma relação entre intervenção estatal e valores igualitários?

 

A reconstrução da esquerda como alternativa política depende da elaboração de uma política econômica que exerça duas funções: por um lado, essa política tem que ser capaz de assegurar a estabilidade do sistema financeiro, mas este não pode ser um objetivo unicamente sistêmico. Essa estabilidade tem que ser compatível com o exercício pelo sistema financeiro de uma atividade econômica que produza resultados para a economia mais ampla.

 

Por outro lado, é preciso que os resultados da intervenção estatal sejam moralmente justos e politicamente igualitários, senão o próprio princípio da intervenção será questionado. François Hollande está certo em questionar Angela Merkel acerca dos custos sociais do pacto fiscal europeu. Mas, se ele quiser avançar mais, terá de ouvir os indignados sobre um novo modo de exercer o papel ativo do Estado.

 

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