O que foram as manifestações de junho e o que é insustentável afirmar sobre elas

Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil

A grande questão que se coloca hoje na ressaca das grandes manifestações de junho é entender o seu significado, que é objeto de disputas e contestações no país neste momento.

 

Por Leonardo Avritzer

 

As manifestações públicas que ocorreram no Brasil no último mês de junho podem ser analisadas sob diversos ângulos: alguns analistas ressaltaram o papel das redes sociais nessas mobilizações que trazem para o Brasil características já vistas em outros lugares do mundo (Egito e Turquia recentemente). Outros analistas enfatizaram o papel da juventude que não era vista na política brasileira desde o movimento dos caras pintadas. Ainda outros analistas têm enfatizado o papel da luta contra o sistema político e a corrupção. E por fim, vimos até mesmo alguns analistas, sem senso de ridículo, dizendo que as manifestações são contra a voltas do nacional-desenvolvimentismo.

 

Na verdade, a grande questão que se coloca hoje na ressaca das grandes manifestações de junho é entender o seu significado, que é objeto de disputas e contestações no país neste momento. Isto se dá por dois motivos: um primeiro porque as manifestações representaram uma democratização do espaço público e do espaço mediático, ambas as dimensões simbolizadas pela ideia de “ocupar as ruas”. No capitalismo global com monopólio mediático que nós vivemos, a rua é o único espaço que não tem nenhum controle econômico e nenhum interpretação preconcebida. Ela é o único local onde a democracia pode ser exercida na sua plenitude.

 

Mas, estas manifestações mostraram também como o monopólio mediático é relativizado em momentos de grande manifestação. No dia 06 de junho, os locais mais acessados das redes sociais no Brasil eram: o portal do Estadão, seguido pelo do Movimento Passe Livre, Anonymous Brasil, Ninja e o site da Carta Capital (segundo análise do Interagentes reproduzida abaixo). Alguns fenômenos são importantes de serem apontados. A mobilização nas redes relativiza o papel da grande imprensa desde que a TV aberta não seja claramente um ator no espaço público, tal como a Globo não foi até pelo menos o dia 10 de junho. É justamente nessas situações que emergiu um certo pluralismo que permitiu que as manifestações não fossem apropriadas pela grande imprensa, mas se constituíssem em um universo mais plural de demandas e reivindicações, em seu primeiro momento.

 

Seis maiores autoridades (hubs que apontam para outros hubs) da rede no dia 06/06:

 

1 - Estadão

2 - Passe Livre São Paulo

3 - AnonymousBrasil

4 - NINJA

5 - CartaCapital

6 - O Globo

 

É interessante a partir desta amostra dos grandes divulgadores do movimento na internet analisar quais foram as principais reivindicações e temas que apareceram na rede neste momento. Claramente, neste primeiro momento, o que aparece como o centro do movimento é a ideia do passe-livre, se tomamos como base os dados para o dia 07 de junho da plataforma causabrasil.com.br que sistematizou os dados de mais de 1.200.000 manifestações nas redes sociais (www.causabrasil.com.br).

 

Segundo estes dados, as principais demandas das manifestações no dia 07 de junho eram: preço das passagens, democracia, qualidade do transporte público, postura da polícia e governo Dilma Roussef. Neste caso, está bastante clara a origem do movimento. Ele surgiu em um campo de esquerda semi-petista ou pós-petista que envolveu militantes de diferentes movimentos da juventude quase todos de esquerda com uma agenda de democratização do acesso ao transporte público e com críticas ao sistema político. Tais críticas, em quase todos os casos, estavam relacionadas ao que podemos denominar de forma da democracia, isto é, uma crítica à maneira como o governo federal e, em especial, o Congresso Nacional vem governando o país através de acordos para a nomeação de cargos políticos.

 

Descrição dos temas das redes em 07/06: 

 

 

Ainda é cedo para avaliar plenamente o que ocorreu no Brasil entre os dias 06 e 20 de junho de 2013. Mas algumas hipóteses podem ser levantadas. A partir da fortíssima repressão policial na manifestação do dia 13 de junho ocorreram pelo menos três fenômenos inter-relacionados. Em primeiro lugar, uma fragmentação da presença dos organizadores do movimento nas redes sociais que foram sendo paulatinamente substituídos por um conjunto plural e fortemente despolitizado de sites e perfis da internet, tal como mostra a tabela 2 abaixo também extraída do site interagentes. O portal do Estadão se manteve em primeiro lugar entre o primeiro e o quarto ato público. O portal da carta capital deixa os dez primeiros lugares a partir do dia 08 de junho. A partir do dia 21 de junho somente o Estadão se mantem entre os 10 principais hubs/autoridades acessados ainda assim no oitavo lugar. Os sites/perfis mais acessados que passam a ser:

 

1 - Anonymous Brasil

2 - Movimento Contra Corrupção

3 - Última Hora

4 - Isso é Brasil

5 - A Verdade Nua & Crua

6 - A Educação é a Arma para mudar o Mundo

7 - Rede Esgoto de televisão

8 - Estadão

 

Quando olhamos os temas que foram majoritariamente abordados nas redes sociais percebemos, mais uma vez, através dos dados do causa brasil, uma mudança completa de temas. No momento em que estes são os sites/perfis mais procurados, também mudam radicalmente os temas e sua centralidade. Podemos dizer que houve claramente um deslocamento do tema do preço das passagens que acabou sendo substituído por três ou cinco temas com expressão muito semelhante: o governo Dilma, gastos das obras da copa, a segurança pública, saúde e educação. Neste momento, não ficou claro quais eram as pautas principais do movimento e mesmo quais eram as suas lideranças. A liderança do Movimento Passe Livre anunciou que pararia de convocar manifestações no dia 21 de junho. Assim, ao final de junho tínhamos uma tripla constelação um pouco problemática que levou a um impasse no movimento. Esta constelação foi constituída por uma perda completa da centralidade dos sites de notícia na internet, por uma entrada de site/perfis conservadores na convocação de manifestações e na retirada do Movimento Passe Livre da convocação destas mesmas manifestações (ainda que ele tenha voltado atrás um pouco depois).

 

Esta nova constelação alterou fortemente a maneira como as notícias sobre o movimento circularam. O diagrama abaixo é um retrato dos temas que circularam na internet nos últimos dias de junho e nos primeiro de julho. Aqui notamos os seguintes fenômenos: uma forte pluralização dos temas alguns sem nenhuma conexão com outros, como por exemplo, segurança com gastos da copa e a migração de questões relacionadas ao governo Dilma para o centro das atenções. Foi neste momento, que quase tivemos no Brasil uma onda anti-política seguindo-se a uma forte politização da rua.

 

Descrição dos temas das redes no dia 30-06:

 

 

 

A partir do final de junho acentua-se uma outra tendência. Esta tendência parece ter sido formada por dois processos. A reação da presidente Dilma Roussef, através do seu pronunciamento na televisão no dia 21 de junho, mudou a tendência das postagens e estabeleceu uma nova relação entre a mídia e internet. Dilma passou a pautar mais fortemente uma re-politização do movimento que se expressou no pronunciamento dela, no recebimento das lideranças do movimento e na reunião com os governadores. Os três eventos conjuntamente marcaram fortemente uma readequação da pauta e das autoridades da internet que foram relevantes a partir dos últimos dias de junho. No que diz respeito as autoridades da internet, o site do interagentes não tem dados para este período, ainda que poderíamos supor uma certa re-acomodação da relação entre sites/perfis independentes e sites/perfis de alguns dos grandes órgãos mediáticos.

 

No que diz respeito aos temas que circularam na internet, percebemos um movimento interessante. O governo Dilma sai do centro das postagens ainda que tenham sido significativas as postagens relativas ao governo. O centro agora é ocupado por um conjunto de postagens relacionados a temas políticos ou de políticas públicas, tais como, educação, saúde, papel dos partidos e combate à corrupção. Assim, depois de um período de fragmentação das mensagens e de des-politização dos temas, temos um retorno a temas e mensagens políticas.

 

Principais temas na internet nos dias 06 e 07-07:

 

 

Temos, assim, delineados temas e grandes agendadores das manifestações de junho e a partir daí é possível fazer uma análise destas manifestações. Elas definitivamente começaram com o tema do preço das passagens no seu centro, ainda que tivessem também expressado, inicialmente, preocupação com a democracia e com a postura da polícia. O governo Dilma aparecia, neste momento, com um tema secundário. Os sites/perfis que melhor expressavam o movimento eram ou sites/perfis mais independentes ou sites de informação. A mudança na agenda a partir da segunda semana de Junho é clara e envolve dois processos, o de fragmentação dos temas e o de pluralização das autoridades que geraram as noticias na internet. Este processo só é relativizado no final de junho com a resposta da presidente e do sistema político às manifestações. Neste momento, há uma retomada de temas políticos e preocupação com políticas públicas, como saúde, educação e reforma política.

 

A lição que fica das manifestações tanto para o sistema político quanto para a opinião pública pode, talvez, ser resumida da seguinte forma: há um enorme potencial de insatisfação ligado a infra-estrutura urbana e às políticas públicas no Brasil hoje. Este potencial tem sido explorado por atores de esquerda, mas pode vir também a ser objeto de manifestações de atores conservadores, quando a porta de entrada leva apenas a uma agenda despolitizada relativa à luta anti-corrupção. As diferentes constelações políticas das manifestações de junho podem ser analisadas da seguinte forma: quando o governo e os atores sociais progressistas se separam, tal como ocorreu, entre os dias 06 e 20 de junho, o potencial que se expressa é o da fragmentação e da canalização conservadora destas demandas. Quando os dois se unem em uma agenda comum, o que começou a ocorrer a partir do dia 21 de junho, o movimento expressa uma visão progressista da política. Ou seja, a lição das manifestações de junho é que o governo federal precisa dos atores sociais críticos e estes necessitam do governo. A reforma política expressa da melhor forma possível a relação entre os dois.